Um lugar chamado Weinstube Kommerzienrat

Acredito que todos viveram – ou vão viver – momentos realmente marcantes na vida. Marcantes mesmo, daqueles para serem classificados como muito F… Pode ser pulando de pára-quedas ou bungee jump, dando a luz ao primeiro filho ou até comprando um sonhado apartamento.

Gastronomicamente, tive vivências espetaculares, mas meu momento F… foi nesse lugarzinho com nome complicado: Weinstube Kommerzienrat.

Há alguns meses, tive a oportunidade de visitar a Alemanha, especificamente a região onde se localiza o vilarejo de Neustadt. Um desses lugares que parecem fazer parte de uma cidade de casas de boneca gigantes.

Eu estava acompanhado de outras pessoas e, durante a nossa estadia, fomos assessorados por um morador local que prometera nos levar a um lugar magnífico para jantar naquela noite.

Dito e feito.

Entramos na sua Van, e enquanto rasgávamos os vinhedos da região, a 180 km/h numa estradinha de duas faixas, tentávamos manter nosso foco no belo pôr-do-sol e esquecer o risco iminente de morte. Foi divertido. Como uma montanha russa com uma descida de 45 minutos ininterruptos.

Ao chegar no vilarejo vizinho, as ruas se estreitaram de tal forma que mal havia espaço para a passagem do nosso veículo. De qualquer modo chegamos com sucesso ao tal “Weinstube-qualquer-coisa”.

Era um restaurante adaptado dentro de uma casa quase medieval, encravada à um pequena montanha. A construção em pedra datava de meados do século XVII e somente a enorme árvore do quintal tinha mais de 180 anos.

Fomos recepcionados ainda fora da casa por um senhor de terceira idade, muito carismático, que nos acompanhou até a parte de dentro do restaurante. As únicas quatro mesas visíveis ficavam localizadas no local que originalmente era um quintal, na parte da frente da construção. Antes de sentarmos, fomos explorar todos os aposentos.

Na parte de dentro do local, havia uma microcaverna, toda de pedra, que seguia montanha adentro e que era utilizada pelo proprietário como uma adega naturalmente climatizada.

Havia mais 4 mesas no interior do recinto. Todas vazias.

Voltamos a nossa mesa no quintal, que dividimos com uma família de italianos e um casal alemão. Sentei bem ao lado de um par de roseiras. A mais próxima era vermelha, a outra, branca. Mais tarde eu entenderia o motivo dessas cores.

Assim que sentamos, abrimos a primeira garrafa de um vinho branco seco, safra megarreservada, fabricado na região, e vendido apenas para uma lista seleta de vizinhos “chegados” do produtor. Assim como todos os outros vinhos que tomaríamos naquela noite. F…

Durante as conversas que se desenrolaram naquela noite, e que contavam com a participação do senhor que nos recebeu à porta do restaurante – bebericando e sentado à mesa conosco -, ouvi estórias que me fascinaram.

Aquele senhor era o proprietário de uma indústria de fabricação de papéis de cigarro. Na verdade, ele era o proprietário da maior fábrica desse ramo na China. Entre muitas histórias envolvendo viagens à Ásia, Chineses semi-escravos e um mercado absurdo de 300 milhões de fumantes, descobrimos que ele era um frequentador assíduo daquele restaurante, até alguns anos atrás.

Certa vez, ele se deparou com as portas cerradas, e foi informado que o local fechara em função da baixa procura pela clientela da região, sem hesitar, comprou o local e anunciou a sua aposentadoria do ramo de papéis de cigarro (pelo menos de maneira operacional, embora ainda receba os rendimentos da fábrica).

Com sua situação financeira muito bem resolvida, aquele homem manteve o local aberto, cozinhando sem cardápio, com receitas que variam de acordo com o dia, com sua inspiração, com seu humor e com a oferta de produtos frescos dos fazendeiros da região. Sempre mediante reserva antecipada. Não adianta chegar na porta do local sem reserva, mesmo que esteja vazio. Nos dias em que não há clientes, ele tira folga.

Ele é o único funcionário do local. Um senhor de 60 anos, solitário que usa o restaurante como um instrumento para atrair pessoas e momentos prazerosos para perto de si.

Após algumas horas de conversa altamente animada e pratos perfeitamente casados com os vinhos da região, fomos surpreendidos por uma garrafa de cachaça Nêga Fulô, fruto de uma viagem daquele simpático senhor ao Rio de Janeiro. Zeramos a garrafa, mas prometi levar uma de presente para ele caso retornasse para lá algum dia.

Apenas para situar o leitor. Estávamos em um restaurante pseudomedieval, localizado em uma vila minúscula no interior da Alemanha, para um público hiper-seleto, bêbados, bem alimentados e fechando a noite com uma Nêga Fulô retirada de uma adega-caverna de 400 anos de idade! MUITO F…!

Eu sai de lá apaixonado. Pelo ambiente, pela rusticidade, pela exclusividade, pelo charme, pelo encanto daquele senhorzinho de cabelos brancos. Aquele jantar me faz pensar até hoje.

Quem sabe daqui a alguns anos eu não volto para lá, carregando uma garrafa de Nêga Fulô na mochila e descubro que o local está fechado. Que o simpático velhinho mudou seus planos. E com uma vida financeira bem resolvida, eu compro o local e o mantenho aberto, para no futuro, apaixonar mais uma nova geração. Cozinhando só para amigos, para sentar à mesa, beber junto, rir e contar histórias de um passado que não volta mais.

Ah, quanto às roseiras, nunca viram uma gota d’água sequer. Elas são regadas todos os dias com os restos das taças dos vinhos bebidos por lá. De suas próprias palavras:

Red wine for red roses, white wine for white roses. That’s all they need.

F…
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Categorias: Falando de cozinha

Autor:Tiago Teixeira (@Ti_Teixeira)

Um ser humano underground e aquariano convicto. Amante das artes culinárias, da rua Augusta, dos esportes violentos e dos cães sem raça definida. Nas horas vagas, é dublê de mãos para cenas perigosas. Formado em Gastronomia pelo SENAC, já trabalhou nos melhores restaurantes de São Paulo. De garçom a chef, sem frescura.

3 Comentários em “Um lugar chamado Weinstube Kommerzienrat”

  1. Fabiano Gomes
    06/04/2011 às 08:57 #

    Bom dia!

    Ontem me deparei com a foto deste e senhor e resolvi ler o texto, mas pensei: “Será hilário!” Me enganei, foi mais do que isso, foi um aprendizado e aula de reflexão.
    É impressionante a leitura, simples, fácil e de uma riqueza, me senti no local, experiências como essas vivida por você, é a graça do razão de viver. Show..

    Grande Abraço
    Fabiano Gomes

  2. Felipe
    30/03/2011 às 19:40 #

    Tiago,
    Essa experiência toda se resuma em uma única palavra, porém da maneira que apenas você saberia dizê-la: SENSACIONAL!

    Grande abraço

  3. Fá Frazão
    29/03/2011 às 17:15 #

    Nossa Thi! História F! desse post. Fiquei emocionada com a simplicidade e “riqueza” desse lugar. Desejo que esse sonho se realize pra você.

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